Para enquadrar os aspectos mais negativos daquele projecto é necessário recuar à discussão que teve lugar, durante vários meses, em torno da LBS, até vir a ser aprovada em 19 de julho de 2019, com os votos favoráveis do PS, BE, PCP, PAN e Verdes. Essa intensa discussão foi basicamente marcada por duas escolhas sobre a organização da prestação de cuidados de saúde: de um lado os defensores do Serviço Nacional de Saúde; do outro os apologistas do Sistema Nacional de Saúde. De um lado, todos quantos entendiam que continua a caber ao Estado garantir o direito à saúde, na modalidade que a Constituição consagra, o SNS; do outro, os que desejam ver diluída a organização pública dos cuidados de saúde num sistema em que os sectores público e privado entravam em competição pelos dinheiros que continuariam a ser públicos, retirados dos impostos pagos pelos contribuintes.
Dessa vez, mau grado as hesitações do PS, acabou por vencer o campo do SNS.
Perante as insistências que foram chegando à tutela da saúde, da necessidade de se proceder à elaboração do Estatuto do SNS, foi finalmente divulgado e colocado à discussão pública o projecto de decreto-lei que inclui o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, mas também o regime de criação, organização e funcionamento dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) e o estatuto dos Hospitais, Institutos Portugueses de Oncologia e Unidades Locais de Saúde (ULS).
Ressalvando o aspecto técnico de num mesmo diploma estarem legisladas matérias diferentes, uma ligada à organização e funcionamento do todo (SNS) e outras ligadas a algumas partes desse todo (ACeS, hospitais, institutos de oncologia e ULS), uma vez que ficaram esquecidos os cuidados continuados, por exemplo, o que se verifica neste projecto é a cedência aos interesses dos defensores do Sistema Nacional de Saúde, leia-se aos interesses do sector privado, querendo isto dizer que este sector quer ganhar por via administrativa o que perdeu no confronto de ideias.
Tomemos dois exemplos, porventura os mais danosos para o funcionamento dos serviços públicos de saúde. O primeiro, diz respeito ao regime de trabalho em dedicação plena para os médicos (art. 16.º). Para este regime ficaria previsto uma única restrição, a incompatibilidade “com o exercício de funções de direção técnica, coordenação e chefia em instituições privadas e do setor social de prestação de cuidados de saúde”. Para os directores de serviço ou de departamento ficaria previsto que poderiam exercer funções assistenciais em instituições privadas ou do sector social.
Não optando pelo regime de dedicação exclusiva, mesmo opcional, como já existiu, o Governo mantém em funcionamento a porta giratória entre o sector público e o sector privado, impedindo desta forma a separação inequívoca entre os dois sectores. Com a previsão de se estender a outros profissionais da saúde, este é um dos aspectos chave dos defensores do Sistema Nacional de Saúde: existir permanentemente uma fonte pública de recrutamento para manter em bom funcionamento o sector privado. Foi assim que se chegou à situação actualmente existente no SNS. E é a isso que este governo não deseja pôr termo. Remunere-se convenientemente a dedicação exclusiva e o corrupio e promiscuidade entre os dois lados ficaria resolvido.
O segundo exemplo está contemplado no art. 64º. O disposto neste artigo representa a possibilidade de alienação das instituições hospitalares, cuja formulação consiste em os membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Saúde virem “autorizar cedências de exploração de serviços hospitalares”, “autorizar a participação do estabelecimento de saúde, EPE, em sociedades anónimas que tenham por objeto a prestação de cuidados de saúde”, “autorizar, (…) a participação do estabelecimento de saúde, EPE, no capital social de outras sociedades”.
Se no primeiro exemplo, o Governo está a ceder mão-de-obra altamente qualificada ao sector privado, no segundo caso, está a autorizar o sector privado a tomar conta da área hospitalar do SNS. Alguém, um dia, afirmou que o sector privado iria tutelar não só os seus hospitais, mas também do sector público. Este projecto de estatuto vem ao encontro deste intento. Entre a aspiração e a realidade, a consumar-se a vontade do Governo, teriam passado pouco mais de meia dúzia de anos.
Do ponto de vista político, podemos agora afirmar que a Lei de Bases da Saúde e este projecto de decreto-lei espelham bem os dois momentos desta governação. A governação do período 2015-2019 produziu a boa Lei de Bases da Saúde; a governação 2019-2021 tem intenção de produzir dois estatutos que, a entrarem em vigor, iriam contribuir para a destruição do SNS. Francamente, até parece que o PS enveredou, na parte final do seu Governo, pelos caminhos do New Labour. (C Justo, in Público)